Outro dia, ouvi uma mulher que, ao criticar um livro de que não tinha gostado, achou relevante perguntar quantos anos tinha a autora.
— Acho que trinta e poucos — respondi.
— Ela tem outros livros?
— Tem, esse é o segundo.
— Ah, então é isso — disse a interlocutora num tom aliviado de eureca. — Tem que dar um desconto, ela é iniciante.
A conversa não era sobre mim, mas, como autora de vinte e tantos anos com dois romances publicados, fiquei ruminando esse comentário mais tarde.
O que mais me pegou foi o desconto, mas talvez a discussão comece no iniciante, então vamos por partes.
Não sou filósofa, mas, como autora, acho que cabe a pergunta: o que é uma escritora iniciante? Entendo que, para quem não trabalha com literatura, a resposta parece óbvia: ora, quem “só” publicou um livro ou dois. Em contrapartida, uma escritora experiente seria aquela que já tem uns dez livros publicados por editoras grandes, quiçá até traduzidos para uma ou duas línguas, prêmios, estande na Bienal, topo no ranking dos mais vendidos.
O problema é que afirmar isso é como dizer que uma pessoa que acabou de terminar sua primeira maratona é um corredor iniciante, porque, afinal de contas, “só” correu uma maratona. E todo mundo sabe que um corredor experiente é quem já correu umas dez maratonas ao redor do mundo, pelo menos.
Nesse tipo de análise, só se leva em conta o produto final — no caso da literatura, o livro publicado. Desconsidera-se todo o tempo que a escritora praticou, leu, estudou e se aperfeiçoou antes de enfim pôr seu trabalho no mundo. Como se “iniciar” o ofício de escritora fosse publicar um livro.
Quem trabalha nesse meio sabe que não é por aí. Antes da publicação, há todo um processo árduo de desenvolvimento, que engloba inclusive autossabotagem e superação. Inícios sem fim, rascunhos inacabados e, provavelmente, até um ou alguns livros engavetados que talvez nunca vejam a luz do dia. Depois, a publicação.
Sem contar que, se a quantidade de livros publicados é critério, Carla Madeira e seus três romances é, provavelmente, uma escritora iniciante. Assim como Martha Batalha, Aline Bei, Vanessa Passos, Harper Lee.
E aí entra a questão do desconto.
Duvido muito que alguém leia uma das autoras acima com um pé atrás, cheio de ressalvas, “dando um desconto”, porque a pessoa não tem tantos livros publicados.
Experiência conta? Claro que sim. Em tese, quanto mais uma escritora escreve, melhor ela será no seu ofício — assim como qualquer profissional, em qualquer área. Mas nem por isso nós queremos caridade.
Tenho vinte e tantos anos e dois livros publicados. Acabei de lançar a versão física do meu romance A estrela de mil braços, do qual tenho um orgulho imenso. E, apesar de não esperar que esse seja o melhor trabalho da minha carreira (porque pretendo continuar escrevendo até o fim da vida e me aperfeiçoando cada vez mais), quero ser levada a sério desde já.
E, para além disso, quero que todas as escritoras sejam levadas a sério desde já.
A gente não quer desconto. A gente tem condição de bancar tudo.
Pode passar no Pix.
Acho que a percepção dessas pessoas — que claramente entendem pouco do processo criativo — é de que o trabalho de autores é só aquilo que chega aos olhos delas, quando, na verdade, a nossa escrita existe muito mais por fora daquilo que é de fato publicado. A experiência tá sendo moldada em todos os escritos que nunca chegam ao público. Baita texto!